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CRIME PRATICADO POR BRASILEIRO NO EXTERIOR E A TERRITORIALIDADE TEMPERADA

Olá, gente!

Quero conversar com vocês um ponto de Direito Penal que cai com frequência em provas, geralmente nas objetivas. Para ilustrar nosso estudo, inseri alguns aspectos de Direito Constitucional e de Direito Processual Penal, bem como tomarei um caso real (omitirei nomes verdadeiros) amplamente divulgado nos nossos meios de comunicação como ponto de partida, o que demonstra a atualidade e a prática dessa temática. Vamos lá!

Caso:
Tício, brasileiro nato, 19 anos, foi morar na Espanha na companhia de seu tio Mévio, a esposa de seu tio, Minerva, e as filhas do casal, Hercília e Abeona, crianças de pouca idade. Em meados de agosto de 2016, Tício matou toda a família, sabendo-se que utilizou de sevícia e meios cruéis para tanto, deixando os corpos mutilidados envoltos em sacos plásticos no interior da residência. Após cometer o crime, o acusado fugiu para o Brasil, mantendo-se oculto até o descobrimento do fato pelas autoridades espanholas. Após investigações e exames periciais, a polícia da Espanha apontou a autoria do crime na pessoa de Tício, que a essa altura já estava no Brasil (a história continua e as conclusões também).



Seria possível o julgamento de Tício no Brasil? Qual a competência para processo e julgamento?

A Espanha poderia solicitar ao Brasil a extradição de Tício?

Supondo que fosse viável a extradição, haveria implicações referentes à prisão perpétua?

A questão envolve a “Aplicação da Lei Penal no Espaço” (TERRITORIALIDADE e EXTRATERRITORIALIDADE) prevista nos arts. 5o e 7o do Código Penal:

Territorialidade
Art. 5º - Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.


O art. 5o disciplina a TERRITORIALIDADE, que constitui a REGRA GERAL de aplicação da lei penal no espaço, ou seja, é aplicável a lei brasileira aos crimes cometidos no território brasileiro, conceito que abrange o espaço territorial delimitado pelas fronteiras, o mar territorial, a plataforma continental e o espaço aéreo correspondente.

Além disso, POR EXTENSÃO, se consideram como território brasileiro as hipóteses previstas nos §§ 1º e 2º do art. 5o.



§ 1º - Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar.
§ 2º - É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil.

Pois bem, vê-se que nosso exemplo o crime foi cometido em território Espanhol e o acusado se encontra no Brasil. Apenas pela óptica da TERRITORIALIDADE, não seria possível puni-lo no Brasil.

A Espanha poderia solicitar ao Brasil a extradição de Tício?

O pedido encontraria óbice no dispositivo constitucional que veda a extradição de brasileiro nato e limita a extradição do naturalizado: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei” (art. 5o, inciso LI). Sendo Tício brasileiro nato, não poderia ser extraditado!

Apenas supondo que se tratasse de um estrangeiro, seria possível a extradição? Haveria algum tipo de limitação em face de eventual pena na Espanha? Sucintamente (porque o tema é gigante, vide art. 76 e ss. do Estatuto do Estrangeiro), seria, sim, possível a extradição de Tício. Há vários requisitos, mas o que chama a atenção nesse caso é que, ao menos em tese, a pena eventualmente imposta poderia ser de “prisão permanente” , conforme o Código Penal Espanhol:

Artículo 140.
1. El asesinato será castigado con pena de prisión permanente revisable cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias:
1.ª Que la víctima sea menor de dieciséis años de edad, o se trate de una persona especialmente vulnerable por razón de su edad, enfermedad o discapacidad.
2.ª Que el hecho fuera subsiguiente a un delito contra la libertad sexual que el autor hubiera cometido sobre la víctima.
3.ª Que el delito se hubiera cometido por quien perteneciere a un grupo u organización criminal.

Sendo assim, seguindo a jurisprudência do STF, deveria haver o compromisso do Estado requerente (Reino da Espanha) no sentido de comutar a pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade de no máximo trinta anos: "Diante da possibilidade de aplicação de prisão perpétua pelo Estado requerente, o pedido de extradição deve ser deferido sob condição de que o Estado requerente assuma, em caráter formal, o compromisso de comutar a pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade com o prazo máximo de 30 anos." (Ext 1.069, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-8-2007, Plenário, DJ de 14-9-2007.) No mesmo sentido: Ext 1.234, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 8-11-2011, Primeira Turma, DJE de 5-12-2011; Ext 1.051, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 21-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009.


Pois bem, resta avaliar a possibilidade de Tício ser responsabilizado no Brasil pelo crime cometido no exterior. Nesse sentido, entra em cena a EXTRATERRITORIALIDADE, disciplinada no art. 7o do Código Penal, destacando-se que a teoria adotada no Brasil é a da TERRITORIALIDADE TEMPERADA ou MITIGADA, ou seja, como regra a TERRITORIALIDADE e em determinadas circunstâncias a EXTRATERRITORIALIDADE. Vejamos o que giza o CPB sobre isso:

Extraterritorialidade
Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I - os crimes:
a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;
c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço;
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;
II - os crimes:
a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;
b) praticados por brasileiro;
c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.

A extraterritorialidade poderá ser INCONDICIONADA ou CONDICIONADA. Será incondicionada nas hipóteses do inciso I e o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.

Por outro lado, será condicionada nas hipóteses do inciso II e dependem das seguintes circunstâncias, concomitantemente: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

No caso que estamos estudando, restam presentes as circunstâncias que autorizam o processo e julgamento do crime no Brasil. Com efeito, o acusado entrou em território nacional; o fato é punido tanto no Brasil (homicídio qualificado) quanto na Espanha (homicidio y sus formas); o crime é comum e permitiria, se fosse o caso e hipoteticamente, a extradição; não havia ocorrido julgamento, tampouco absolvição na Espanha; por fim, não havia ocorrido qualquer beneplácito ou circunstância extintiva de punibilidade. Portanto, estando o acusado no Brasil e atendidas as hipóteses para aplicação da EXTRATERRITORIALIDADE, seria viável o seu processo e julgamento no Brasil.

Sendo assim, poderia surgir a dúvida sobre quem competiria o processo e julgamento.

Alguns poderiam imaginar que pelo fato de o crime ter sido cometido no exterior, seria competente a Justiça Federal, mas uma simples análise do art. 109 da Constituição Federal afastaria essa possibilidade, salientando e relembrando que a competência criminal da Justiça Federal está prevista em ROL TAXATIVO.

Seria, portanto, competente a Justiça Estadual. Mas que foro? A resposta está no Código de Processo Penal, precisamente no art. 88 que diz: “no processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.” No caso sob exame, o réu residia no Brasil, sendo seu último domicílio a cidade de João Pessoa, que é a própria capital do Estado da Paraíba, competente para o processo e julgamento. Pela natureza dos delitos – crimes dolosos contra a vida - o Tribunal do Júri.

Falei para vocês que a história continuava... É que posteriormente, dada a repercussão do caso, entre outras considerações, o acusado espontaneamente retornou à Espanha, confessou o crime às autoridades e permanece preso aguardando julgamento.

São temas bem interessantes! Para quem desejar aprofundar mais, indico o livro de Cleber Masson (Direito Penal Esquematizado – Parte Geral), bem como Pedro Lenza em Direito Constitucional (Cap. 16, especificamente) e, sobre competência em Processo Penal, o livro de Renato Brasileiro.

Um excelente fim de semana a todos!


Gus

@holandadias

4 comentários:

  1. Excelente post!!! Muito esclarecedor e didático.

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  2. Muito bem Dr. Eduardo. É bem bacana ler as considerações de casos, aparentemente complexos, por pessoas que os tornam de simples entendimento. Por isso sou assíduo neste espaço. Bons estudos a todos!

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  3. Explicação super didática!

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  4. Passou hoje no fantástico que o réu foi julgado no mês de novembro de 2018. A promotoria está analisando a possibilidade de pedir prisão perpétua. Poderia esclarecer o caso de aplicação da pena estrangeira à brasileiro condenado no exterior?

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