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AFINAL O QUE É A NORMA FUNDAMENTAL HIPOTÉTICA?
Afinal, o que é a norma fundamental
hipotética?
Trata-se, inegavelmente, de
conceito (apenas) memorizado pela enorme maioria dos candidatos, mas
pouquíssimo compreendido. O “decoreba” pode até ser suficiente para resolver
questões objetivas envolvendo o tema, mas e se você for instado a dissertar
acerca de em provas discursivas ou arguido sobre em provas orais? Vale lembrar
que “humanística” vem sendo cobrada com grande profundidade e cada vez mais em
um maior número de certames jurídicos.
A culpa não é sua de,
eventualmente, não ser hábil a “dissertar sobre”. A maioria dos manuais, mesmo
aqueles mais qualificados, é insuficiente para tanto. Somente enfrentam
superficialmente o conceito quando apresentam o “sentido jurídico de
Constituição”. Pedro Lenza[1],
por exemplo, afirma que “A concepção de Kelsen toma a palavra Constituição em
dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo. De acordo com o
primeiro, Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é
servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição
jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema”.
Em sentido muito semelhante,
Marcelo Novelino[2]:
“O Mestre de Viena faz uma distinção entre constituição em sentido
lógico-jurídico e em sentido jurídico-positivo. Em sentido lógico-jurídico,
consiste em uma ‘norma hipotética fundamental’. Fundamental, por ser o
fundamento de validade da constituição em sentido jurídico-positivo;
hipotética, por só existir em tese, como norma metajurídica pressuposta (e não
posta)”.
Que fique claro: a Constituição em
sentido jurídico-positivo é a “norma constitucional propriamente dita”. Em
nosso caso, a Constituição de 1988, positivada, escrita e codificada.
Mas, afinal, o que é a norma
fundamental hipotética desenvolvida pelo jusfilósofo Hans Kelsen em sua Teoria
Pura do Direito?
Para compreender adequadamente esse
conceito, é necessário insistir em um ponto: em Kelsen, há uma cisão entre Direito
e Ciência do Direito. Ou seja: Kelsen separa a manifestação “bruta” do direito,
como fenômeno social, do entendimento científico que se possa fazer a respeito
dessa manifestação.[3]
A tão falada “pureza” é da Ciência
do Direito, ou melhor, da ciência descritiva do Direito, e não do Direito. Na teoria
kelseniana, a aplicação concreta do Direito (diferentemente da Ciência do
Direito), é um ato de política jurídica, envolvendo moral, ideologia, enfim,
admitindo que, no plano da aplicação, o juiz realiza um ato discricionário de
vontade.[4]
Na prática, portanto, o Direito se
mistura a todos os demais fenômenos sociais. Há juízes que julgam de acordo com
suas inclinações sociais e políticas. Isso significa que o ato de escolher qual
dentre as múltiplas interpretações possíveis e válidas, para Kelsen, é,
repita-se, discricionário. A interpretação, ato de vontade e essencialmente
político, consiste no preenchimento de uma possibilidade dentro de uma moldura
oferecida pelas normas e não necessariamente será apenas tal possibilidade que
se apresentará dentro da moldura.[5]
Nem por isso, cientificamente, o direito
será considerado a partir da política. Sua proposta principal, inscrita na sua
Teoria Pura do Direito, era desenvolver uma Teoria Geral do Direito, mas não
uma teoria geral do direito austríaco, por exemplo, mas uma que, em razão de
sua generalidade, pudesse servir para explicar todo e qualquer ordenamento
jurídico de qualquer país, em qualquer tempo. Para que isso fosse possível,
justamente, necessitava expurgar da Ciência do Direito todo conteúdo “não
jurídico”.[6]
Como teoria (pura), quer única e
exclusivamente conhecer seu próprio objeto. Procura responder a uma única questão:
o que é e como é o direito? Sua indagação é sobre a possibilidade do
conhecimento jurídico. A objetividade desse conhecimento deve ser afastada de
qualquer entendimento do direito enquanto fato social, enquanto fato econômico,
enquanto fato político ou moral. Assim sendo, há de restar um núcleo
especificamente jurídico no direito, e esse núcleo será o objeto da Ciência do
Direito.[7]
No nível da Ciência Jurídica, portanto,
Kelsen pretende expurgar todo e qualquer conteúdo que não possa ser reduzido ao
critério da validade, isto é, o fato de encontrar em uma norma que lhe é
hierarquicamente superior à sua autorização para existência no mundo jurídico.
A partir daí, toda e qualquer norma deve encontrar seu fundamento de validade
na Constituição.[8]
Assim, para Kelsen, a norma
jurídica é válida quando uma norma hierarquicamente superior do sistema dá
validade a ela (a Constituição concede validade a todas as normas inferiores e
a norma fundamental dá validade à Constituição). Com isso, temos um limite na
norma fundamental. Sem dúvida, no âmbito da Ciência do Direito, Kelsen não quer
saber se uma norma é justa ou injusta, e sim se válida ou inválida.
O cientista do Direito é,
justamente, o responsável por descrever, com imparcialidade e sem juízo de
valor, todas as possíveis interpretações de uma determinada norma, delimitando
assim, por meio do critério da validade, um quadro (ou uma “moldura”) que
permita ao aplicador identificar quais interpretações são válidas e quais não
são.
A Constituição em seu sentido
lógico-jurídico, contudo, além de dar fundamento de validade a todo sistema,
inclusive à Constituição em sentido jurídico-positivo, tem função primordial de
“fechar o sistema”, sendo uma convenção para que este não se torne infinito,
sendo o ponto de início e fim, ou seja, onde começa e termina o sistema
jurídico.
Para Kelsen, a Ciência do Direito
somente pode ser pensada a partir de uma construção escalonada do ordenamento
jurídico, que estabelece patamares tendo por base a hierarquia das normas.
Pode-se fazer a imagem de uma pirâmide para tanto.
Se a validade de uma norma é dada
pelas normas que lhe são superiores, a grande indagação teórica que se faz a
Kelsen é a respeito da culminância do próprio ordenamento jurídico: quem (ou o
que) dá validade às normas mais altas do ordenamento jurídico, isto é, às
normas constitucionais?
Ora, a norma mais elevada terá de
ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja
competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. Lembram que a
norma fundamental hipotética tem dentre suas funções a de “fechar o sistema”
para que este não se torne infinito? Assim, e para não dar margem a identificar
nas relações sociais concretas a base que impõe o ordenamento jurídico, o que
faria uma ciência que se pretendia pura depender de fatos sociais para sua
explicação, Kelsen lança mão de um recurso não concreto, mas apenas teórico.[9]
Ela serve como um mecanismo que isola a normatividade do ordenamento jurídico
do contágio dos fatos e condição para o entendimento da cadeia lógica de
validade de um ordenamento, sem recair em infinitude.
A cadeia de normas não se
fundamenta em algo concreto, como um poder social que impõe a Constituição e o
ordenamento. Para não dar margem a um ser (o poder) que impusesse o conjunto do
dever-ser (o ordenamento), Kelsen lança mão de um pressuposto, uma verdadeira
norma fictícia, que deve ser o guia do cientista do direito.
A Ciência do Direito abstrai dos
fatos concretos e trabalha em outro nível. Por isso a dificuldade de exposição
e compreensão do conceito de norma fundamental hipotética. Kelsen fugiu, sim,
da realidade para construir uma ciência jurídica. Isto é, construiu seu próprio
objeto de conhecimento: a ciência jurídica.[10]
Por essas e outras que é tão criticado.
[1]
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2019,
p. 95.
[2]
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2019,
p. 98.
[3]
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2018, p. 340.
[4]
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento,
2017, p. 17-19.
[5]
MASCARO, Alysson Leandro. Opus citatum, p. 355.
[6]
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador:
Juspodivm, 2019, p. 180.
[7]
MASCARO, Alysson Leandro. Opus citatum, p. 344.
[8]
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Opus citatum, p. 74.
[9]
MASCARO, Alysson Leandro. Opus citatum, p. 351.
[10]
STRECK, Lenio Luiz. Opus citatum, p. 20.
Luís Henrique Linhares Zouein é defensor público substituto do estado do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Em 29/08/2019
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